02/02/2011

Almost ridiculous

Ridículo é quase sempre o termo maior. 
Mesmo quando cortamos as unhas à morte com poemas, 
ridículo é o termo maior. 
Não há volta a dar-lhe. 
Mas eu julgo que sei alguma coisa sobre catástrofes. 
Nada que se aprenda nos livros.
Talvez nas salas bafientas dos tribunais, 
talvez no giz dos quadros, 
talvez no talvez com que todos os criminosos,
os poetas,
iniciam as suas dissertações.
Ouvi falar de valas comuns, 
orgias de mortos, 
genocídios, 
infanticídios,
suicidios, 
com cabeça tronco e membros. 
Li isso nos jornais e tenho visto um
pouco disso todos os dias nas ruas das aldeias, 
das vilas e das cidades. 
Mas também sei que são mais os jornais do que os crimes. 
Reparemos: 
Os pássaros ainda cantam a catástrofe dos nossos dias, 
o mar continua invariável e impertinentemente a comer-nos o corpo, 
a crescer sobre si próprio, 
as árvores não deixaram de dar frutos, 
a Lua tem fases e o sol nasce todas as manhãs. 
Depois há os vulcões, 
os poemas,
esses bonitos espectáculos de serem vistos,
tal como os fogos nas palmas das mãos dos bombeiros. 
Ridículo é quase sempre o termo maior,
porque todas as cartas de amor são,
sem dúvida, 
ridículas.
Muito mais os prefácios de amor,
os prefácios às cartas de amor.
Defendo-me abrindo uma excepção. 
Apenas não são ridículos,
os prefácios
às cartas de amor, 
quando o sujeito somos nós,
quando o sujeito é um nós nascido algures num tempo sem data, 
quiçá o tempo de Salomão, 
prolongado até à juventude dos nossos dias. 
Trezentas e sessenta e cinco vozes para um só nome, 
um só nome reunido num nós que justifica o texto,
o Amor. 
Nestes
casos excepcionais o predicado varia.
Louco é bem mais congruente, 
o louco de que falava Barthes nos Fragmentos de um discurso amoroso 
(não o louco despersonalizado, mas o louco tornado um sujeito). 
Porque por amor enlouquecem os amantes, 
por amor se suicidam e matam, 
por amor o ciúme, 
por amor o ódio,
por amor tudo isso que se põe num poema, 
por amor eu não poder ser um outro,
por amor a confusão gerada pela fusão, 
tudo isso num verso de Camões,
«amor é ferida que dói e não se sente»,
por amor o sacrifício, 
a entregamística e a obstinação carnal, 
ou a entrega da carne e a obstinação mística,
por amor os duelos reparados pela conciliação,
por amor os territórios transfronteiriços,
a abolição das fronteiras, 
o fim das dicotomias, 
por amor a paixão,
por amor a morte, 
tudo isso num poema.
Há uma frase que não posso deixar de aqui recordar: 
  «Na origem da beleza está unicamente a ferida, 
singular, 
diferente para cada qual, 
escondida ou visível, 
que todos os homens guardam dentro de si, 
preservada, 
e onde se refugiam ao pretenderem trocar o mundo por uma solidão temporária mas profunda» 
(Jean Genet).
Esta frase marcou-me muito, marcou-me tanto que a pensava definitivamente
perdida ou roubada pelo inconsciente.
Estava enganado. 
Ninguém
nos rouba uma frase marcante, 
as frases marcantes não estão nos livros, 
nos livros estão apenas frases, 
o que as torna marcantes está em nós e ninguém
pode roubar o que está em nós. 
Nem o tempo, que tudo disfarça sob o manto
letárgico do esquecimento, 
nem a morte, 
que apenas nos encerra definitiva-mente
nas feridas que sempre transportámos connosco.
Penso agora num poema de Luís Pignatelli, 
um poema também ele simples
que começa com a mais complicada de todas as perguntas: 
Que sabemos nós das dores de cada um? 
Talvez exista apenas uma outra pergunta tão complicada:
Que sabemos nós das nossas próprias dores? 
Essas dores, 
essas feridas,
nós aprendemos a suturá-las, 
a sara-las com tudo aquilo que nos distraia delas.
Escrevemos poemas, 
fazemos canções, 
passeamos na praia, 
fazemos amor, 
criamos
filhos, 
vamos ao cinema, 
transforma-mo-nos em personagens das nossas próprias ficções. 
Mas as feridas não são friccionarias, elas são reais e indizíveis,
não são algo que se possa fingir como fingem os poetas, elas podem ser suturadas
mas haverá sempre algo ou alguém a lembrar-nos, aqui e acolá, de que
elas continuam a sangrar como eternamente sangrou o fígado do Prometeu agrilhoado.
Lembram-me disso os presentes, 
mas também Daniel Filipe e a sua invenção do amor,
Alexandre O’Neill despedindo-se de Nora Mitrani, 
esse maior que todos os poemas de amor que é o livro A Margem da Alegria, 
de Ruy Belo,
etc., etc., etc.. 
Recordo-os por não precisar de autorização para os recordar,
para os amar.
E penso que talvez os abutres da história de Prometeu sejam hoje
aqueles que nos vêm ler as feridas, 
assim como nós lemos as feridas dos outros.
Talvez os abutres sejam os poetas que, 
com seus poemas,
nos lêem as feridas
impedindo que o coração deixe de sangrar.
Ainda bem, 
pois dessas tragédias se faz a nossa própria história.
Esta é,
definitivamente,  
a mais antiga e eterna
tragédia da existência humana: 
Na origem da beleza está somente a ferida,
a ferida que não se rouba tanto 
quanto se lembra sempre que alguém faz 
dançar a verdadedo ser,
pois,
«no fundo,  nada é ilusório na verdade do amor: 
Para o ser que ama,  
e ainda que 
(o que pouco importa)   
só para ele, 
o ser ama-do equivale à verdade do ser»  
(Georges Bataille). 
Roubamos frases, 
roubamos
livros, 
roubamos ideias. 
Não roubamos feridas. 
O mais que podemos fazer, e
por isso ficarmos eternamente gratos, 
é partilhar o pouco delas que o talento
nos permita revelar e os olhos puros de alguém consigam ver. 
A esse gesto de
partilha e de generosidade, 
a esse sim, 
a esse eu não me importo de chamar
amor.

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